Capítulo III: Mecanismos

O objetivo deste terceiro capítulo é a discussão dos mecanismos de interatividade presentes na cultura digital, vis a vis às dimensões formuladas no capítulo anterior. Vou agrupar os mecanismos em três conjuntos, em função de seus macro-objetivos comunicacionais, e discuti-los a partir de dois focos: suas funcionalidades e a interatividade que proporcionam. Os três macro-objetivos são: a publicação de textos para leitura; a viabilização de diálogos e a constituição de comunidades virtuais.

Dada a multiplicidade de mecanismos de interatividade que operam na Internet, seria inviável tratá-los unitariamente. A análise por meio do agrupamento proposto pretende permitir que as dimensões de interatividade sejam compreendidas de maneira comparativa, evidenciando similitudes e diferenças entre os vários mecanismos de interatividade que operam cada um dos macro-objetivos identificados. Ademais, o propósito desta dissertação é mapear as dimensões da interatividade e não constituir sua cartografia na cultura digital.

O agrupamento pelos macro-objetivos identificados é, certamente, problemático. Sua construção cristalizou-se durante a discussão da versão preliminar desta dissertação, junto à banca examinadora de qualificação. A criação de dois campos distintos pelos processos de escritura / leitura e pela atividade do diálogo é bastante evidente, tendo permeado itens anteriores do presente texto. A maior dificuldade está na proposição de que mecanismos de interatividade para formação de comunidade criam um terceiro campo, que se insere no mesmo plano que os dois anteriores, do ponto de vista do macro-objetivo comunicacional.

O primeiro problema está no fato de que as comunidades virtuais operam tanto processos de escritura / leitura, quanto de diálogo. A solução está na compreensão do objetivo que orienta os agentes interativos, quando estes operam os mecanismos de interavidade das comunidades virtuais. Os agentes do processo de escritura / leitura comunicam-se, tendo como objetivo a construção e compreensão do objeto texto. O escritor tem como meta impregnar o texto de um determinado sentido que tenciona transmitir. O leitor, por sua vez, tem a intenção de apropriar-se de um sentido do texto produzido. No diálogo, opera o mesmo mecanismo, se entendermos cada fala dos agentes como um pequeno texto. Porém, neste caso, o objetivo dos agentes é a construção de sentido através da interlocução. Não há um texto previamente produzido cujo sentido é construído pela apropriação do leitor, mas, sim, um texto diálogico produzido pelos interlocutores durante a interação. Na escritura / leitura, a interatividade produz o sentido; no diálogo ela produz o texto. Nas comunidades virtuais, o textos e os diálogos produzem um ambiente social. A interatividade produz o contexto que condiona o sentido produzido pelo diálogo, impregado na escritura e apropriado pela leitura. O objetivo maior dos mecanismos de interatividade que viabilizam as comunidades virtuais não é fazer transitar textos ou permitir que interlocutores dialoguem. A razão de existir destes mecanismos é constituir a “sensação de pertencer a um ambiente que todos constroem e compartilham” [Costa 2002:71].

Muito embora não pretenda operar uma perspectiva peirciana nesta dissertação, cabe aqui sugerir, para questionamento futuro, que estes três macro-objetivos espelham as categorias básicas de Peirce: primeiridade, secundidade e terceiridade [Santaella 2002]. Texto, diálogo e comunidade refletindo, respectivamente, a primeiridade; enquanto qualidade; a secundidade, enquanto ação e reação; e a terceiridade, enquanto mediação [ibidem]. Como demonstra Santaella em seu magnifico tratado sobre as matrizes da linguagem e do pensamento, o texto pode ser carregado de múltiplas instâncias das categorias peircianas que se encadeiam seqüencialmente [ibidem]. Já em relação à interatividade, o texto é um objeto mônade, já que a interação produz o sentido que emana do objeto. Perceber o diálogo como secundidade é mais simples, visto que este é pura ação e reação, uma relação diádica [ibidem]. No diálogo, o sentido emana da relação entre os interlocutores. Nas comunidades, a interação opera para construir o contexto. A interação conduz os agentes a produzir o terceiro elemento, a própria comunidade, criando a relação triádica que caracteriza a terceiridade [ibidem]. O sentido supera o objeto texto e os interlocutores e passa a ser constituído em função da mediação do contexto de relações sociais, construído interativamente.

O segundo problema subjacente ao agrupamento pelos macro-objetivos identificados é que tanto a escritura / leitura, quanto o diálogo comportam relacionamentos sociais entre seus atores. Não há escritor, leitor ou interlocutor fora de uma comunidade. Neste ponto, é necessário centrar o foco no objeto da pesquisa, a interatividade. Na escritura / leitura, os agentes estão inseridos em suas comunidades, o que certamente condiciona o sentido daquilo que comunicam. Porém a interação não opera a comunidade, tanto que podemos ler textos escritos por autores que não compartilham nosso contexto social. Já o diálogo está inserido numa relação social presente. Porém, os agentes não precisam pertencer a uma mesma comunidade, para que o diálogo ocorra. Já, quando tomo os mecanismo de interatividade que têm por objetivo a formação de comunidade, o que está em jogo é a capacidade de colocar os agentes num contexto de relacionamento social comum.

Para cada um dos agrupamentos, vou identificar os mecanismos de interatividade inseridos e discutir sua natureza. Não de maneira exaustiva e, sim, com o objetivo de explicitar o que considero relevante para a compreensão da interatividade, vis a vis o macro-objetivo em questão. Não existe um compromisso de abarcar todos os mecanismos de interatividade. A rapidez com que novos mecanismos têm se desenvolvido condenaria esta pretensão de abragência ao fracasso.

Vale também notar que os mecanismos de interatividade na cultura digital são, na maior parte das vezes, híbridos, em relação aos macro-objetivos identificados para esta análise. Híbridos nas suas manisfestações, como no caso de um site na WWW, espaço de publicação por excelência da Internet, que pode carregar uma sala de chat para viabilizar diálogo ou ser o endereço de uma comunidade virtual constituída através de um sistema de conferência eletrônica. Híbridos também nas suas finalidades, como demonstra o mecanismo email que, embora seja o mais importante potencializador de diálogos da Internet, viabiliza mailing lists que operam formação de comunidades e newsletters que constituem método de publicação de texto.

Para completar o objetivo deste capítulo e da dissertação em si, vou empreender uma análise prática de uma manifestação específica para cada um dos três grupos, nos quais divido os mecanismos de interatividade. Novamente, há qualquer pretensão de abrangência, o objetivo é demonstrar a viabilidade e a utilidade da análise, através das dimensões propostas no capítulo anterior. A seleção dos objetos de análise é puramente pessoal, tomando por critério, seja minha intimidade com o mecanismo de interatividade, seja meu apreço por uma manifestação específica.

Como exemplo de espaço de publicação, tomarei na WWW um de meus sites preferidos, www.tofteproject.com, pois o considero uma demonstração superlativa das possibilidades de construção de interface para leitura interativa de um discurso abrangente e complexo. Para exemplificar as dimensões da interatividade no campo dos potencializadores de diálogo, vou analisar o aplicativo de mensagem instantânea: o ICQ (www.icq.com), não somente por força de sua populariedade, mas, principalmente, pelo fato de ser uma tecnologia que utilizo diariamente. Como objeto de análise entre os formadores de comunidade, minha escolha é tão pessoal quanto as demais, trata-se da comunidade Brainstorms, constituída por Howard Rheingold, da qual venho participando há mais de dois anos. Esta opção apresenta um pequeno problema, visto tratar-se de uma comunidade privada cujos conteúdos não devem ser reproduzidos fora de seus domínios. Mantenho essa escolha, apesar deste fato, visto que o que pretendo discutir são mecanismos de interatividade que podem ser descritos, sem o apoio de imagens e exemplos específicos e, também, porque como membro da comunidade posso discorrer sobre os objetivos comunais e as normas de conduta, além das funcionalidades do mecanismo de interatividade que a comunidade utiliza, o software Caucus (www.caucus.com). Além do mais, qualquer leitor interessado em contrapor meu relato ao objeto em si, pode ser convidado a participar da comunidade mediante o envio de um email ao Howard Rheingold, conforme instruções descritas em seu site (www.rheingold.com).

Com o objetivo de mapear, graficamente, cada um destes três objetos em relação às dimensões da interatividade identificadas no capítulo anterior, vou utilizar o gráfico reproduzido abaixo. Vale notar, que a aplicação deste gráfico não caracteriza o mecanismo de interação cujo objeto de análise exemplifica. A proposição analítica, que a imagem do gráfico corporifíca, é válida apenas para a manifestação específica que pretende representar. Ou seja, o gráfico desenhado para a comunidade Brainstorm não se aplica para a comunidade Slashdots, como veremos no item dedicado aos formadores de comunidade. O objetivo do gráfico e de sua aplicação é, novamente, demonstrar a utilidade da análise prática que as dimensões de interatividade possibilitam.

O gráfico apresenta as quadro dimensões com seus vetores específicos. Os vetores que se definem, a partir de polaridades, têm suas instâncias representadas por esferas. Já aqueles vetores, que se distribuem em contínuos, são representados por eixos cujos pontos limites caracterizam as instâncias discutidas no capítulo 2. Na descrição gráfica, temos duas representações um pouco diversas deste esquema geral. Para o vetor do método na dimensão do sentido, também representamos a instância caracterizada pelo ponto médio. No vetor da polaridade da mesma dimensão, a possibilidade de um mecanismo de interação não polar é representada pela esfera, fora do eixo.

Figura 1 – Dimensões da interatividade